Você tem vida fora do trabalho?

por Rob Cross em hbrbr.com.br

“Minha viagem a negócios foi cancelada e, de repente, me vi com tempo livre. Fui para casa em um lindo dia de verão e, quando entrei na garagem, percebi que cada um da minha família estava em algum lugar fazendo algo e que eu não tinha amigos com quem conversar ou não tinha mais os passatempos que eu um dia tanto gostei. Fiquei no carro por mais de uma hora pensando em como havia chegado a esse ponto.”

Este comentário de um conceituado executivo de software reflete um padrão que já testemunhei no meu trabalho com centenas de executivos de sucesso. Ao sair da faculdade com uma série de interesses e amigos, eles escolhem uma carreira que prioriza dinheiro, status e, às vezes, repercussões. A carga de trabalho chega rapidamente a mais de 12 horas por dia, o deslocamento e as viagens resultam em menos exercícios físicos e menos eventos sociais, e o próprio universo fica reduzido ao trabalho e a alguns amigos selecionados. Comprar uma casa e constituir família são o próximo passo, limitando ainda mais a interação social e aumentando a pressão financeira, tornando o trabalho ainda mais central.

Nesse ponto, esses executivos querem mais e se mudam para uma casa maior, um bairro melhor ou colocam seus filhos em uma escola mais cara, que representa a continuação do que bons provedores podem oferecer. Às vezes, dobram o seu padrão. De qualquer forma, é nesse momento que esses executivos são levados à uma câmara de eco, onde não há tempo para amigos (nem, às vezes, para a família) e o trabalho define toda a sua existência por cerca de cinco a oito anos. Eles acabam desistindo dos grupos e das atividades que um dia os ajudaram a combater o estresse ao qual se submeteram. Se as atividades eram relacionadas a habilidades, como jogar tênis ou correr em grupo, torna-se quase impossível acompanhar o ritmo dos que ainda os fazem.

Se tiverem sorte, acordam em um momento de epifania, como meu amigo do Vale do Silício. Mas muitos não a têm, e acabam sofrendo um esgotamento, enfrentando um divórcio e entrando em crise.

Como meus colegas e eu estudamos essas pessoas há mais de duas décadas, percebemos que há um grupo seleto que não é vítima desse círculo vicioso. São pessoas de alto desempenho em suas organizações, que também obtêm alta pontuação nas medidas de bem-estar. Por isso, trabalhamos para identificar o que os torna capazes de gerenciar uma carreira de sucesso, preservando atividades sociais importantes que geram felicidade.

O que descobrimos é que eles quase sempre cultivaram e mantiveram conexões reais em dois, três ou quatro grupos fora do trabalho: atividades esportivas, trabalho voluntário, comunidades cívicas ou religiosas e clubes sociais, como clubes de leitura ou jantares. Por outro lado, as pessoas que estavam em seu segundo ou, às vezes, terceiro casamento, em um estado não saudável à beira de uma crise, ou que tinham filhos que apenas os toleravam, quase sempre haviam permitido que a vida se tornasse unidimensional, ou seja, totalmente centrada no trabalho. O sucesso no emprego era o que definia, exclusivamente, o sucesso na vida pessoal e gradativamente os retirava de todos esses grupos e atividades.

Como eles chegam a esse ponto? Na verdade, com a melhor das intenções. Uma maneira sedutora de justificar nossas escolhas para nos concentrarmos de forma unidimensional no trabalho é olhar a vida através das lentes do provedor: estamos fazendo sacrifícios por nossa família. Não que a família seja uma má escolha. Pelo contrário, é uma âncora importante na nossa vida. Mas se tudo o que fazemos é trabalhar para a nossa família e isso nos define, na verdade, não estamos provendo da maneira que poderíamos se estivéssemos mantendo outros laços sociais. De forma paradoxal, focar apenas em prover por meio do trabalho rouba nosso bem-estar e cria vulnerabilidade.

Você pode sentir, especialmente nos dias de hoje em que muitas pessoas pensam com mais intensidade no significado e no propósito, que se tornou uma pessoa unidimensional, vivendo de forma não saudável e em meio à vulnerabilidade. É possível mudar as coisas e retomar atividades e conexões sociais que melhorarão sua vida e a vida de seus entes queridos.

Para começar, permita-me oferecer três sugestões.

1. Troque apenas uma atividade para criar objetivos diferentes, gerando interações.

Nosso propósito na vida é construído por meio de interações dentro e fora do trabalho. Para muitos, o trabalho é uma fonte legítima de propósito, mas 50% ou mais de como vivenciamos o propósito e o significado, vêm da gama de relacionamentos à nossa volta. O propósito não está apenas na natureza do nosso trabalho, mas também nas redes construídas em torno dele. Pessoas que realizam trabalhos nobres em organizações — curando doenças, salvando a vida de crianças, educando — podem estar entre as mais infelizes, ao passo que pessoas que realizam atividades aparentemente comuns sentem um forte senso de propósito. Tanto as conexões no trabalho quanto na vida pessoal criam um senso de propósito. Conexões profissionais que criam propósito são vistas nas seguintes áreas:

  • Líderes e cultura organizacional: trabalhar para um líder ou visão inspiradores ou estar imerso em uma cultura que faz a coisa certa e se preocupa com o sucesso dos colegas.
  • Colegas de trabalho: cocriar um futuro significativo de forma colaborativa e interagir com pessoas que compartilham valores semelhantes, de forma autêntica.
  • Equipes e mentores: criar um contexto para que seus semelhantes, colegas de equipe e mentorados prosperem — ajudando, observando o crescimento, compartilhando o aprendizado, sendo transparente e sensível.
  • Consumidores e stakeholdersreceber a aprovação das pessoas que consomem o que foi criado — ciência que cura pessoas ou produtos que melhoram a vida, por exemplo.

As conexões de vida que criam um propósito ocorrem nas seguintes áreas:

  • Espiritual: interagir com uma religião, música, arte, poesia e outras esferas estéticas da vida que colocam o trabalho em um contexto maior.
  • Cívica e voluntária: contribuir com grupos relevantes gera o ganho do bem-estar por se doar e coloca você em contato com pessoas diferentes, mas com a mesma forma de pensar.
  • Amigos e comunidade: formar conexões por meio de atividades coletivas: atividades atléticas, clubes de leitura ou jantares, amizades com os pais de outras crianças.
  • Família: cuidar da família e dar exemplos de bom comportamento, bem como manter a identidade por meio de interações com a família e parentes.

O objetivo aqui não é mudar sua vida repentinamente para incluir as áreas mencionadas acima. Gostaríamos de começar mudando apenas uma atividade. Qual? Utilize o exercício abaixo para escolher.

Conexões que criam propósito

Fonte: Rob Cross

Reflita sobre a tabela acima. Primeiro, designe 100 pontos a esferas que atualmente lhe dão o maior senso de propósito. As esferas às quais você não atribuiu 100 pontos são aquelas que podem conferir dimensionalidade à sua vida.

Segundo, no meio do círculo, indique uma atividade que, se você passasse a realizá-la, poderia ter um grande impacto no maior número de esferas. Caso não seja imediatamente óbvio para você, pense nos interesses que você tinha no passado. Recorrer a atividades esportivas, passatempos e paixões costuma ser o primeiro passo para que pessoas acomodadas se lancem em novos grupos. Assim que possuir um, comprometa-se com um objetivo nessa esfera, interagindo com o grupo envolvido. Estabeleça regras rigorosas e envolva a família para apoiar a sua busca.

Após consolidar a mudança em sua vida, repita o processo mais uma ou duas vezes. Você descobrirá, como outros que já fizeram esse exercício, que as desculpas que você dava para não estabelecer conexões fora do trabalho eram apenas isso – desculpas. Você tem tempo e as coisas se ajustarão no trabalho se você permitir.

2. Seja consciente em pequenos momentos.

Procure se envolver de forma mais deliberada, mesmo quando parecer haver pouco tempo para fazer muita coisa. Concentre-se em como influenciar e não em como ser influenciado por todas as interações que possui hoje. Por exemplo, é possível:

  • Viver “micromomentos” de forma voluntária: é bom demonstrar aos outros, em rápidos momentos, que você acredita neles, estimulando-os ou auxiliando-os a fazer a coisa certa, a descobrir pontos em comum entre vocês e a entender as aspirações das pessoas. Simplesmente alterar a maneira como nos envolvemos nas relações nos ajuda a ver como a nossa rede atual pode alimentar nosso senso de propósito.
  • Estabelecer diálogos permanentes sobre o que vale a pena realizar: As pessoas que evitam momentos de crise na vida passam mais tempo conversando com outras sobre maneiras de viver a vida. Uma executiva de sucesso formou um conselho composto por pessoas nas quais podia confiar em tempos difíceis. Ao contrário dos mentores tradicionais, esse grupo tinha pessoas mais jovens e mais velhas e de todas as classes sociais, mas a ajudou a refletir sobre como estava lidando com seu propósito.
  • Recorrer aos relacionamentos: Sólidos relacionamentos normalmente nascem em situações difíceis. A forma como você lida com momentos adversos com outras pessoas, sua capacidade de ver possibilidades e ser proativo e de se solidarizar com o próximo permitem que você vença momentos difíceis, mas também criam conexões com as quais você pode contar.

3. Aceite, corajosamente, tempos de transição.

Enxergue as transições como oportunidades – não como ameaças – para descobrir uma versão nova e melhor de si mesmo. Observe e desconecte-se das coisas que drenam o seu propósito e, então, dedique-se a atividades e grupos novos com os quais deseja se engajar e que considera ser uma parte positiva da sua identidade que agora busca um propósito. O mais importante, tenha perseverança, mesmo que pareça assustador ou difícil.

Veja o exemplo de uma executiva bem-sucedida na área de tecnologia que, ao longo de uma carreira de mais de 20 anos, se tornou alguém que ela não planejava ser. Aos poucos, o peso do seu trabalho e o impacto dele em sua saúde e identidade a fizeram sucumbir, e ela acabou deixando para trás um emprego que muitos invejavam. Ela decidiu se dedicar à sua saúde e começar a praticar yoga. E, ciente de sua tendência cética, prometeu ao marido que faria três tentativas.

Na primeira, achou entediantes todas aquelas pessoas excessivamente agradáveis. Na segunda, zombou internamente do instrutor “esquisito” e com trejeitos homossexuais. Na terceira, aguentou um pouco mais, mas mesmo assim sentiu que aquilo não era para ela. Quando a aula terminou, o instrutor caminhou pela sala e tocou a cabeça de todos os alunos.

E para grande surpresa de todos, ela começou a chorar. Ao analisar o que havia acontecido, percebeu que era a primeira vez em muito tempo que se permitia estar vulnerável ou ser autêntica. Ela perdeu a pose. Sentiu-se exausta com o que parecia fácil. Mas compartilhou essa vulnerabilidade com os desconhecidos na sala — algo que sua personalidade corporativa não teria tolerado. Algum tempo depois, o yoga se tornou um componente central na vida dela e do marido. A atividade define grande parte do universo social deles e, até mesmo, suas férias. Mas isso nunca teria acontecido se ela não tivesse permitido uma transição e persistido no processo. Os relacionamentos proporcionados pela nova atividade conferiram dimensionalidade e perspectiva à sua vida, que não existiam quando o trabalho governava tudo. Essas duas coisas se tornaram uma fonte de resiliência. Isso a ajudou a viver a vida de acordo com o que ela acredita ser melhor, e não, de acordo com as definições de sucesso das outras pessoas.

A fim de identificar e aproveitar os momentos da mesma forma que fez essa executiva, considere o seguinte :

  • Inicie o processo de transição quando não fizer sentido: O momento de ir além é aquele no qual você se sente confortável ou quando sente que, primeiro, precisa se acostumar com uma situação para enfrentá-la. Em vez disso, abrace a causa. Inicie uma transição com disponibilidade ampla e precoce, reestabelecendo conexões nas atividades existentes pelas quais se interessa (fé ou esporte) e iniciando pelo menos uma atividade nova.
  • Concentre-se no seu eu ambicioso, no seu comportamento e nos seus relacionamentos: Use a transição para refletir sobre objetivos e aspirações socialmente definidas ou convenções históricas que o definiram. Reflita sobre uma maneira de investir no trabalho que deseja realizar ou em uma atividade com outras pessoas que acrescentaria grandiosidade e amplitude à sua vida.
  • Esteja ciente de choques ou de tensões que o afastem de seus valores. Não deixe sua reação a uma situação negativa ou momento afastá-lo de quem você deseja ser — muitas vezes, o que parece temporário acaba se incorporando às expectativas que o cercam.

Certamente vivemos tempos difíceis. Porém, somos nós mesmos que definimos as nossas experiências. Nunca na história tivemos habilidade maior para definir o que fazemos e com quem.

Não abra mão desse controle. Caso o tenha perdido, retome-o. Inúmeras vezes, vi pessoas com um enorme senso de propósito e bem-estar.

Rob Cross é titular da cátedra Edward A. Madden de Liderança Global na Babson College e coautor do livro “The hidden power of social networks” (Harvard Business Review Press, 2004).

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